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N O T A   D I R E T O R A


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Descobri esse poema anos depois de minhas primeiras viagens de carona, durante a realização de meu primeiro longa-metragem, o documentário road movie Fabiana. Ele traduz, ao mesmo tempo, o que é a experiência de viajar de carona, a vida da protagonista e o processo de realização de um filme de estrada.
Em 2006, migrei de Goiânia para São Paulo. Foi a partir daí que comecei minhas viagens de carona, com o desejo de conhecer também o caminho que me levava a um destino. Cada carro ou caminhão que parava era um universo de histórias pessoais que se somavam às paisagens que transcorriam pela janela durante a viagem. Com essas histórias, seria possível montar uma espécie de cartografia oral e sentimental dos lugares percorridos.


Muitos dos que paravam para me oferecer carona eram caminhoneiros, todos homens. Em geral, dão carona para conversar, afastar a solidão e sentir o tempo passar mais rápido. Porém, em uma das vezes em que pedi carona, em 2012, uma mulher dirigindo uma grande carreta parou: era ela, a Fabiana. Viajamos de São Paulo a Brasília durante dois dias. Nesse percurso, ela me contou várias histórias que tinha vivido nas estradas. Com seu forte sotaque do interior de Goiás, lembrava-me os contadores de causos goianos que proseiam sobre as coisas simples do cotidiano.

no sudoeste de Goiás, na infância Fabiana começou a se reconhecer como mulher. Devido à intolerância de seu pai em aceitá-la como como mulher, na casa dos 20 anos ela se mudou para Goiânia, onde primeiro trabalhou como mecânica, antes de começar a ser caminhoneira. Horas depois do início de nosso percurso juntas, ela me revelou: “Posso te contar? Eu gosto é de mulher!”. E começou a falar de suas aventuras na estrada. Foi no mundo dos caminhões – o mais inusitado a princípio – em que ela reafirmou seu gênero e sua sexualidade. Não apenas numa posição de defesa e resistência aos preconceitos, mas, principalmente, de enfrentamento.


Desci em Brasília e suas histórias continuaram reverberando em minha memória e foi crescendo o interesse em realizar um documentário com ela. Logo cedo percebi que não se trataria de umdocumentário de entrevistas realizadas em encontros pontuais. Mais interessante seria um documentário feito a partir de uma experiência de imersão na realidade de Fabiana, que resultasse de nosso encontro na estrada. Desse modo, poderia me aprofundar mais em seu universo, deixando que esse tempo precioso, que passa quando percorremos quilômetros a fio, permitisse fazer emergir espontaneamente aquilo que estava ali guardado e que, por livres associações, vinha à memória.

“Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,

repleto de aventuras, repleto de saber.

[...]
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.

Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,

sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.”


“Ítaca”, de Konstantinos Kaváfis*
 


Mantivemos contato por telefone e, em 2015, nos encontramos em um posto na periferia de Goiânia, quando ela me contou que estava tramitando o pedido de aposentadoria. Então, percebi que se aproximava um momento crucial: suas últimas viagens, nas quais eu deveria acompanhá-la nesse fechamento de ciclo antes de deixar a estrada.


Comecei a me preparar para a grande e última viagem de Fabiana, que durou 28 dias, por 11 mil quilômetros. Assim que partimos, como eu previa, ela começou a me contar outras histórias de suas aventuras pela estrada. Tudo em seu tempo, entre um café e um cigarro, o olhar fixo no horizonte, o silêncio e, de repente: “Ah, Brunna, me lembrei de uma coisa...”. Então, começava um novo causo. Às vezes, eu comentava algo em um momento que apenas muitos quilômetros depois despertava em sua memória – mais histórias vinham. Ao mesmo tempo, fui criando determinadas situações, como incentivar um encontro ou uma parada em um lugar específico, para ver o que de imprevisível e rico poderia surgir.
O que resultou foi um documentário em que o espectador vai conhecendo Fabiana aos poucos, à medida que ela vai se sentindo à vontade e vai contando suas histórias, seja diretamente a mim, seja nas conversas com amigos e amigas que encontramos. Elementos do seu passado e do presente vão emergindo de forma gradual, nos dando peças de um mosaico que representaria sua vida. Esse caráter, em contraposição a uma biografia que pretendesse preencher todas as lacunas de sua vida, se reforça pelo fato de Fabiana não contar suas histórias por completo, deixando sempre algo nas entrelinhas. Ainda que muito nos revele, ela alimenta silêncios nos quais reflete sobre questões passadas ou presentes, o que a torna uma pessoa ainda mais instigante.


Acredito que essa maneira de me posicionar contribuiu para que uma cumplicidade fosse crescendo entre nós. Cumplicidade a tal ponto que Fabiana também começou a indicar o que ela achava interessante que fosse filmado, tomando frente do que é representado em seu próprio filme. Isso, somado à espontaneidade com que divide suas histórias, foi um caminho para respeitar a forma como ela gostaria de ser representada.


Entretanto, pouco mais adiante na viagem, uma segunda caroneira sobe no caminhão: Priscila, que vem para desconstruir a imagem que Fabiana tratou de construir sobre si mesma na primeira parte do percurso, trazendo mais complexidade e humanidade ao seu universo. Fica o convite para vocês assistirem ao filme.

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* KAVÁFIS, Konstantinos. Ítaca. In: Poemas. Tradução José Paulo Paes. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

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